Caetana reivindica lugar na nova geração da música pernambucana: “sou uma preservadora da cultura tradicional”

A artista reflete sobre o cenário musical pernambucano em entrevista exclusiva ao LeiaJá

Caetana reivindica lugar na nova geração da música pernambucana: “sou uma preservadora da cultura tradicional”

Caetana é a nova geração da música popular pernambucana – Foto: Fran Silva

Olhar para o cenário musical pernambucano e não ver “corpas” diversas é um incômodo que acompanha a cantora Caetana, travesti, negra e periférica, que carrega em sua sonoridade a identidade “afronordestina” com orgulho.

Nascida e criada no Coque, localizado na Ilha Joana Bezerra, área central do Recife, Caetana conta que sua identidade foi forjada pela sua conexão com as avós paterna e materna, respectivamente, Dona Mara e Helena. Com Dona Helena, Caetana aprendeu sobre a terra. Já com Dona Mara, a multiartista entendeu a magia dentro da religiosidade.

Apesar disso, essas contribuições não foram todo o adubo para o crescimento artístico de Caetana. Para surgir sua versão artística, ela ou pelos maracatus Nação de Oxalá e Nação Baque Forte. Contudo, ela afirma que só encontrou sua “eu” artista quando integrou a Companhia Pé-nambuco de Dança.

“Caetana cantora a pela música e pela dança. Então, a primeira vez que eu me perdi como artista mesmo foi uma dança. Fui eu que me deu esse gás, me entender aqui”, afirmou a cantora recifense.

Com esse gás, Caetana trará seus talentos para o Carnaval do Recife nos dias 2 e 5 de março, no Polo Novo Cais e Palco Marco Zero. “As pessoas podem esperar para ver beleza no palco, vão ver minha inventividade, vão ver Axé no palco, vão ver Oxum de certa forma também”, revelou a cantora sobre a agenda (confira abaixo).

O início da Caetana

Assim, como uma das vozes que representa a nova geração da música popular de Pernambuco, Caetana conversou com a reportagem do LeiaJá sobre sua carreira, formação artística e performance que preparou para o Carnaval.

À reportagem, Caetana falou sobre falta de apoio persistente e da sua primeira apresentação como cantora, que aconteceu na casa do amigo-pai Wagner Marques, diretor do grupo Pé-nambuco de Dança.

“Eu vou te dizer que a gente se reconhece artista, mas sendo preta, é um tema que a gente vai tá sempre falando. Porque é uma relação de poder e é, às vezes, o desgaste, porque o racismo tenta tirar da gente a possibilidade de se ver poderosa. Quando a gente se percebe e se entende artista é algo que mostra também como um desafio, porque na real, a gente não tem apoio básico. A família não acredita, os amigos acreditam, mas até certo tempo, o apoio é muito escasso”, destacou.

“Eu tava ouvindo [um CD] e eu amei o álbum. Era uma mistura de música, tinha várias coisas. [Daí, eu disse:] ‘Caramba, eu acho que eu vou com música, porque eu sei cantar, eu acredito que minha voz é bonita’. E falei isso para [Wagner], ele até riu, mas acreditava assim também”, relembrou Caetana.

Apesar do afastamento pelo tempo e localização geográfica, quando Caetana viajou para o Rio de Janeiro e São Paulo para crescer na carreira, o reencontro com Wagner aconteceu no Festival PRE AMP. Lá, o amigo-pai reconheceu a voz da cantora que performou a mesma canção que cantou na casa dele. A emoção tomou conta. “Ele me vendo ali naquele megapalco, mesmo palco que rola o Rec-Beat e PRE AMP e outras coisas gigantes”, disse.

Antes de ter seu show próprio, Caetana fez participações com Cannibal, da banda Devotos, nos 30 anos do Manguebeat. Mas, quando teve seu primeiro palco, a cantora fez questão de convidar Maria Helena Sampaio, que está à frente do Afoxé Oyá Alaxé.

Identidade musical

Quando perguntada sobre influências na sua musicalidade, Caetana destacou a identidade negra nas composições. Ela é a primeira mulher trans a gravar um frevo, música que pode ser encontrada no Spotify.

“Não é só música! É uma identidade, é uma expressão e ela pertence ao povo. É povo preto, povo negro, periférico, interior, ribeirinho, toda essa linguagem da música negra desse repertório que tá colocado no Brasil, tem dono. E é isso, não é só uma questão de nascimento brasileiro, vai fazer de qualquer jeito, não. A nossa linguagem, a música parte de uma linguagem”, enfatizou ao falar sobre o frevo e outras canções do álbum Afronordestina (2022).

Em seguida, a multiartista também falou sobre preservação das tradições e barreiras. “Eu sou uma preservadora também da cultura tradicional. Tem muitas líderes com conhecimento sobre direitos humanos, em relação à propriedade intelectual, que percorrem a política em torno das políticas públicas culturais e artísticas. Então, assim, eu tenho plena consciência de que é difícil falar sobre isso com pessoas que não querem ouvir. Eu não tô brigando quando eu falo sobre isso, na verdade, estou fazendo o reconhecimento de quem tem deixado de receber esse reconhecimento”, protestou.

A recifense tem no DNA do seu som os códigos de diversos gêneros pernambucanos. Entre eles, o Coco de Roda, o Maracatu, o Frevo, Brega, Bregafunk e, claro, o Rap. Na conversa, ela trouxe como essas sonoridades se fixam na sua obra. “Essa mistura se dá muito pelos encontros que eu estou aberta também”, afirmou.

Aos ouvidos curiosos, o álbum “Caetana – Deluxe Afronordestina” serve como uma boa tradução das palavras ditas pela artista nesta entrevista. Para ouvir, basta clicar aqui.

Caetana é a nova geração

Durante toda a entrevista, Caetana chamou atenção para a invisibilidade da sua “corpa” com o título adequado ao seu papel como artista de Pernambuco. Nomenclatura que é constantemente reforçada para homens brancos, cis e com amplo espaço nas mídias e palco do Município e Estado.

Um exemplo, foi quando Marron Brasileiro, homenageado do Carnaval do Recife, disse em uma coletiva de imprensa ser 4P’s – preto, periférico, pernambucano e plural -, mas no palco do Marco Zero, no Bairro do Recife, durante a abertura do Carnaval, trouxe uma nova geração – os cantores Barro, Ciel e Romero Ferro – que não se alinha totalmente a luta que durante tantos anos ele travou e trava no mercado musical.

Com isso, o LeiaJá quis saber qual a leitura dela sobre o lugar dos artistas negros, que também são pretos, periféricos, pernambucanos e plurais como Marron, nos palcos cobiçados do Carnaval e para além desse período festivo.

“Existe um apagamento que se dá na força. Eu não tenho ainda a chave do poder. Eu sei que eu vou conseguir, mas eu ainda não tenho. Então é muito doloroso estar o tempo todo falando para essas pessoas, falando para Romero Ferro, por exemplo, que conversa comigo, que me convide […] Existe um sistema que tá colocado para favorecer aquele tipo de corpo, aquele tipo de rosto, aquele tipo de realidade”, refletiu a cantora.

Caetana ainda analisou o esquema de poder que perpetua as vastas chances para artistas brancos em detrimento da classe artística negra, mesmo nos dias atuais. “Essa cidade vive um clima de poder em que se você não está rodeada de pessoas brancas, você não é ninguém, você não é nada, você tem que pegar a validação”, pontuou ela.

Por fim, a cantora popular pernambucana relacionou a atitude de Marron como um ato sem cuidado. “Ver Marron Brasileiro fazendo o que ele fez, de levar três homens brancos e nenhuma travesti, é falta de cuidado, é falta [de cuidado de] muita gente”, declarou.